Opinião Livro

Corações Gelados, Laurie Halse Anderson

Título Original: Wintergirls
Autor: Laurie Halse Anderson
Editora: ASA
Género: Romance Contemporâneo
Páginas: 232
Ano Publicação PT: 2013
ISBN: 9789892316840

Sinopse

«Eu sou aquela rapariga.
Eu sou o espaço entre as minhas coxas, a luz do sol a derramar-se entre elas.
Eu sou a auxiliar de biblioteca que se esconde na "Fantasia".
Eu sou a aberração de circo enclausurada em cera.
Eu sou os ossos que eles querem, ligados num molde de porcelana.»

Viajei na terra dos Corações Gelados devido às inúmeras leitoras que me escreveram a contar a sua luta com distúrbios alimentares, automutilação e sensação de andarem perdidas. A sua coragem e sinceridade puseram-me no caminho para encontrar Lia e ajudaram-me a compreender a sua devastação. Embora não seja uma história da vida real, Lia foi inspirada nessas leituras, e por isso lhes estou muito grata.



Nem sei por onde começar, primeiro porque não é um tema que estou familiarizada e que tem tudo para me colocar impressão, e depois porque a realidade quando nos atinge é complicada de digerir. Acho que esta é a melhor forma de explicar os meus sentimentos após a leitura.

Já é a segunda obra que leio de Laura Halse Anderson e se Grita, não teve o feito esperado depois das boas críticas que lhe são dirigidas, este revelou-se um diamante em bruto. A maneira interlaçada de emoções que pautam a mente de uma jovem em fase adulta fase aos alimentos, aos cheiros, à sua aparência. Temas como a bulimia, anorexia e automutilação são difíceis de explicar e de compreender. Explicar por aqueles que sofrem horrores consigo próprios, de compreender por quem está à beira de alguém que supostamente tem tudo para ser feliz. Contudo a construção do ser humano é mais profunda do que a aparência, e as desordens alimentares têm bases em baixa auto-estima, problemas familiares, problemas de comportamentos sociais. E Lia pode até ser de uma classe social alta, assim como a amiga Cassie, mas nada as impede de quererem reproduzir a aparente perfeita vida que têm com a aparência que acham que deviam ter. Para elas o que é perfeição é aquilo que é visto de fora, só que acabam por colidir com as próprias noções que têm de si mesmas.


Depois da ex-amiga Cassie morrer sozinha num quarto de motel e de sido ignorada por Lia nessa mesma noite, embrenhamos no passado e no presente de Lia. No passado ficamos a perceber o que a levou e à ex-amiga de infância a desenvolver estas doenças. Também sabemos que esteve por duas vezes internada mas que nessas vezes conseguiu sempre dar a volta a médicos, psiquiatras e familiares. Tornou-se numa concha, fazia o que eles queriam até certo ponto enquanto a sua cabeça não aceitava a sua condição. No presente vive constantemente a contar as calorias dos alimentos, tenta conciliar o facto de ter de viver com o pai e a madrasta e o engendrar de planos para não ser apanhada com pouco peso, tenta ignorar a própria mãe assim como o que se passou com Cassie. Nada disto é fácil de suportar e a porta de saída mais rápida é voltar à sua zona de conforto: deixar de comer.


Pior no meio disto tudo, foi ver os pais, a madrasta, a própria psiquiatra e ainda o jovem com quem começa a ter contacto, a lidarem com ela. O facto de saberem que ela estava doente e mesmo assim nada os impedia de agirem da pior maneira possível com ela. Eu sei que ela já é uma adulta mas “pior cego é aquele que não quer ver” e aqui a carapuça funciona para ambas as partes. Só que ela é uma pessoa doente que não tem noção da sua realidade quanto mais das suas atitudes, por isso fez-me bastante confusão a passividade do pai e a agressividade da mãe; e a culpabilização que a madrasta lhe aponta por dar maus exemplos a Emma, enquanto como mãe controla uma criança de 9 anos com aquilo que ela comia. Até própria psiquiatra depois de pela primeira vez  ter admitido o que se passava, deixou-a no consultório a lidar com o seu abandono e consternação. E Elliah, sabendo os problemas dela, até a poderia ter roubado, mas tentasse ao menos arranjar uma solução e não deixá-la completamente sozinha e desamparada. É extremamente difícil para pessoas nesta condição confiarem em alguém mas o que muitas vezes acontece é que os outros é nem se dão ao trabalho de tentarem diferentes abordagens para que a confiança surja, e se querem ver questões como "porquê?" respondidas, pensem "porquê não?".

Lia representa milhares de jovens que não aceitam a sua condição e que acham que o mundo as quer destruir porque não concordam que são "pessoas normais" que apenas querem perder peso. Representa a angústia de alguém que não tem a mínima percepção de quem e como é realmente. A mente é uma força poderosa que pode ser bastante destrutiva e levou-me mais uma vez a pensar que nós só vemos realmente aquilo que queremos ver. E a maneira como me vejo ao espelho irá sempre ser diferente se for outra pessoa a ver-me.
A minha relação com a comida é boa, tenho um peso normal para a minha altura, devia até ter algum cuidado (pelo menos com os doces), mas dietas ou reparar nas calorias dos alimentos sempre foi uma coisa difícil de fazer. E sempre me meteu alguma confusão quem é magro fazer tanto alarido com a contagem de calorias. Mas lá está, infelizmente há pessoas que batalham constantemente pela imagem que pensam ver ao espelho.

Adoro a maneira caricata como a autora traduz os sentimentos que pautam uma alma atormentada, e foi essa escrita de alguém profundamente no abismo, que transformaram este livro marcante. A distorção psicológica é bastante grave e só com esta expressividade é que se consegue chegar ao mais profundo do nosso ser para despertá-lo para as realidades para além da nossa.

Citações:

"Por vezes, ser adulto significa fazer a coisa acertada, mesmo que não seja o que nós queremos"... "Pensa no bom exemplo que darias à Emma: como encarar de frente coisas que nos deixam constrangidas. Toda a gente tem de aprender a fazer isso."

"Porquê? Querem saber porquê?
Entrem num solário e vão a assar dois ou três dias. Depois de a pele fazer bolhas e cair, barrem-na com sal grosso, depois vistam roupa interior comprida feita de vidro e arame farpado. Por cima, vistam a roupa do costume, desde que seja justa.
Fumem pólvora e vão para a escola saltar obstáculos, sentar-se e dar a pata, rebolar quando lhes mandarem. Escutem os murmúrios que se escondem na vossa cabeça à noite, a chamarem-vos feias e gorda e estúpida e cabra e puta e pior de tudo: «que só damos desgostos». Vomitem e passem fome e cortem-se e embebedem-se porque não querem sentir nada disto. Vomitem e passem fome e cortem-se e embebedem-se porque precisam de anestesia e funciona. Algum tempo. Mas depois a anestesia transforma-se em veneno e nessa altura já é tarde demais porque já estão agarrados, até ao fundo da ama. Está a apodrecê-los e não conseguem parar.
Olhem-se ao espelho e vejam um fantasma. Ouçam cada batimento cardíaco gritar que tudo e mais alguma coisa está errado convosco.
«Porquê?»é a pergunta errada.
Perguntem:«Porque não?»"

Classificação: 5 de 5*



 

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